Arquitetura do Comportamento

Limites ao ativismo de marca: quando defender uma causa pode transformar consumidores em detratores. A reação à campanha da Gillette “The Best a Man Can Be”.

Em 2019, um comercial (1) da Gillette chamava os homens a tomarem atitudes para evitar bullying, sexismo e combater a masculinidade tóxica. O debate sobre as consequências da masculinidade toxica já acontecia há anos. O movimento Me Too Já existia desde 2017. Ou seja, de alguma maneira já se estava construindo uma norma social recriminando esse tipo de comportamento nos EUA e muitos outros países.

A marca adotou uma postura ativa frente a um fenômeno social. Este ativismo não é uma postura comum, mas é, entretanto, cada vez mais frequente (2). Dove vem incentivando, desde 2013, a real beleza, num esforço de encampar a luta contra um modelo estético feminino idealizado. Muitas marcas, como Natura e o Boticário, fazem da sustentabilidade parte da sua identidade.

A Gillette imaginava que a campanha seria polêmica, mas nunca antecipou a virulência das reações negativas. Houve ameaças de morte, boicote aos seus produtos e acusações de desrespeito, generalização, oportunismo e hipocrisia, passando por uma enxurrada de dislikes no YouTube (3,4).

Muitas vezes, as marcas tentam defender um tema e, de alguma maneira, convidar os consumidores a aderirem àquela causa (por exemplo, reciclar, ou sentirem-se bem com seus corpos fora do padrão). Em campanhas mais radicais, as marcas chegam até a condenar certas atitudes de instituições (como por exemplo, violência da polícia, ou as ações de governos), e com isso geram antipatia dos partidários daquelas instituições. No entanto, no caso da Gillette, ela acabou censurando atitudes individuais e, pior, muito associadas a como muitos homens veem o seu lugar no mundo.

Além do ativismo por uma causa, a campanha contém uma crítica explicita a atitudes e comportamentos de parte dos seus consumidores. Ela critica a maioria dos homens e os desafia a mudar a sua atitude, censurando comportamentos relativamente comuns. Neste sentido, ela se torna pessoal, ao fazer com que os consumidores se sintam acusados diretamente.

Esta campanha acreditou que já havia uma norma social pacificada em torno do tema. Possivelmente houvesse a sensação de que sim – a imprensa, os tribunais, a indústria cultural, ativismo na sociedade civil, políticas públicas – todas davam indícios de que a chamada masculinidade tóxica estivesse já condenada. Entretanto, o que o pós-campanha constatou é que, no íntimo dos seus consumidores (ou ao menos, de muitos deles), a afirmação da condição masculina através de certos comportamentos ainda definia como muitos homens se veem e como conseguem afirmar a sua masculinidade.

O que causa espanto é que a Gillete não tenha conseguido antecipar tamanha oposição a uma campanha. Provavelmente não verificaram se a atitude do seu público já havia mudado – eles apoiavam esforços contra o bullying, sexismo, ou movimentos como o Me Too? Talvez não tenham testado o copy, ou tenha minimizado os resultados das pesquisas.

O fato é que, na busca por ativismo, as marcas precisam se fazer duas perguntas:

A primeira é se a norma social já está disseminada e pacificada. A atitude da maioria dos consumidores já é favorável à causa? Se a resposta for sim, o que marca fará é ajudar os consumidores a mudarem o seu comportamento, diante de uma atitude já favorável. Se a resposta for não, o risco de alienar uma grande parte da sua base de consumidores é grande, notadamente aqueles que ainda não apoiam a causa. Obviamente, pode ser que atinjamos novos consumidores que compensem a perda, e isto deve ser pesado.

A segunda pergunta é se tocando neste ponto estamos desafiando o âmago de como os consumidores se vem, o seu lugar no mundo. Estamos censurando valores, atitudes e comportamentos que passam pela própria definição deles como pessoas? Se a resposta for sim, a campanha provavelmente deverá ser descontinuada. Caso contrário, o vínculo com a marca daqueles consumidores atingidos corre o risco de se romper definitivamente e eles podem se tornar detratores.

  1. https://www.youtube.com/watch?v=EkRxdtmJ4L4
  2. https://www.sciencedirect.com/science/article/pii/S0148296324002364
  3. https://lup.lub.lu.se/student-papers/record/9007702/file/9007708.pdf
  4. https://www.gendereconomy.org/the-best-a-man-can-be-gillette-and-toxic-masculinity/

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